11 junho, 2014

Relembrar é viver: O amor de um estrangeiro – Falo de Jaldo Pereira

EM OUTUBRO DE 2013, DR. ANTONIO JALDO, FILHO DO SR. JALDO SANTOS, ENVIOU AO BARRADOCORDANEWS UMA JUSTA HOMENAGEM AO SEU QUERIDO E AMADO PAI. ANTONIO JALDO NOS DISSE NAQUELE MOMENTO "EU PRECISO FAZER ESSA HOMENAGEM AO MEU PAI E TENHO DE FAZER COM ELE AINDA AQUI CONOSCO". E CONSEGUIU COM ORGULHO. RELEMBRE.

  A minha visão é psicanalítica, não tenho como escapar disso. Penso que o amor tem um traço, uma marca imperceptível da qual nunca vamos saber a respeito, mas que podemos identificar em alguém, em alguma coisa ou em um lugar. É algo que, sem saber, vemos no que amamos e é exatamente o que nos atrai, o que nos faz amar esse outro – esse alguém, esse algo ou lugar, que faz semblante – quer dizer, começa a ter a aparência daquilo que procuramos – daquilo que estamos sempre procurando e nunca encontrando. Como uma miragem, que identificamos. E meu pai fez isso. Quando chegou a Barra do Corda ele era um menino – um menino que se apaixonou. Ele teve uma paixão por Barra do Corda. 


Claro que ele foi levado pelos pais, mais podia ter saído em inúmeras oportunidades. Eu mesmo, que saí de lá com 15 anos, o chamei para conhecer outros lugares. Mas ele dizia “Não, Barra do Corda tem tudo o que eu quero. Tem as pessoas que eu gosto, tem as pessoas que gostam de mim. Vou fazer o que em outro lugar?” 


Tem pessoas que são de palavras, de letras, que escrevem. Já meu pai sempre foi um homem de ato. Ele fala pouco. Mas sei dele pelas suas atitudes. 


É um homem que tem o primário. Começou a vida fazendo cal para construção. No interior do interior. Depois foi morar na cidade, trabalhar como vendedor. Em seguida, fez sociedade com um concunhado e montou uma das primeiras farmácias da cidade. E, como vendia remédio, as pessoas provavelmente começaram a entender que ele podia receitar e tratá-las. E ele, muito audaciosamente, percebeu que aquilo tinha que ser feito, que ninguém mais faria. Então fez. Fazia pequenas cirurgias, arrancava dentes, receitava remédios – era procurado e ajudava. 


Eu já era adolescente quando chegou o primeiro médico. Lembro dele me falar “Olha, pega o carro, vai buscar o doutor Abreu, traz ele aqui que estou separando um material para ele”. A Fundação onde o doutor trabalharia não tinha quase nada. Assim ele entregou todo o material médico que tinha e, junto, entregou também a função. Nunca mais atendeu ninguém. O que entendo como uma postura ética. Havia chegado quem merecia aquele lugar por direito e ele se retirava dignamente. 


A música é outra de suas paixões. Apesar de não tocar absolutamente nada, lutou pela fundação de uma escola de música. Comprou os instrumentos e, junto com um grande amigo maestro, formou muitos alunos. Formou também os Populares do Ritmo, conjunto que proporcionou muitos momentos de lazer para Barra do Corda e cidades vizinhas. 


Também, com amigos ajudou a criar a Academia Barra-Cordense de Letras, tornando-se assim um de seus membros fundadores. 


Nunca se candidatou a nenhum cargo eletivo, apesar dos inúmeros pedidos da população, e de ser, frequentemente, procurado por políticos como conselheiro e como homem de ação, que resolvia problemas públicos. Saneou ruas, tapou bueiros, arriscou-se na função de engenheiro. Foi Diretor- Presidente de Colégio e Juiz de Paz. 


Tomou a iniciativa de comprar um enorme grupo gerador, distribuiu postes de madeira pelas ruas e forneceu, durante muitos anos, a energia elétrica para a cidade. Também, colaborou ativamente na instalação e funcionamento da primeira Companhia Telefônica de Barra do Corda. 


As pessoas se perguntam por que tantas relações duram tão pouco, enquanto outras duram a vida toda. Não tenho resposta para isso, é um mistério. Mas acredito que não tem nada a ver com o saber, nem com o conhecimento. Tem mais a ver com a arte. Passa pela habilidade de manter uma fantasia viva por muito tempo – e é um esforço que tem que ser seu. Meu pai teve isso com todos os amores da vida dele. Ele sustentava seus amores, às vezes mesmo à revelia desses que amava. Tem isso com a mulher, com os filhos, e teve isso com a cidade, por mais que pudesse ser custoso para ele. Será que isso é que é fidelidade? Não a fidelidade ao outro – mas a fidelidade que comparece na relação com o outro, sendo uma fidelidade ao próprio desejo. 


Quando chegou à Barra do Corda, absorveu a vida cotidiana da cidade com um amor enorme, pelo sofrimento e pela labuta das pessoas, como se fosse dali, apesar de ter vindo de outro lugar, com outros costumes. Mas ele tinha o ímpeto de fazer daquela a cidade dele. De forma que o diferente foi adotado, a ponto de ocupar lugares da lei, da saúde e se fazer um homem público. 


Hoje está com 87 anos e nunca ouvi ninguém dizer dele que fosse um forasteiro, nem acho que ele se via dessa forma. Foi acolhido e acolheu o que a princípio lhe era estranho. E seu nome paira pela cidade, deixando como legado o amor e a ética, que não é certamente a ética de levar vantagem em tudo, mas é a de se satisfazer vendo a beleza e o crescimento da cidade. 


Incluir ou não o outro em nossa vida, não é uma escolha própria, na medida em que o sujeito se constitui através do outro. Se há alguma escolha, ela recai muito mais em quem é o objeto do nosso amor. O outro, quer se queira ou não, faz parte do sujeito. Agora, você pode, sim, incluir o outro não só como objeto de uso, no sentido de se aproveitar dele, para receber amor e prazer dele, mas como alguém através do qual e com o qual será possível efetuar trocas. Essa, em minha opinião, é uma lição que meu pai deixará. 

Por: Jaldo Nascimento Santos 


O Sr. Jaldo Pereira Santos, faleceu ontem, aos 87 anos, e deixa um grande legado de homem justo, colaborador e apaixonado por Barra do Corda.

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