A minha visão é psicanalítica, não tenho como escapar disso. Penso
que o amor tem um traço, uma marca imperceptível da qual nunca vamos
saber a respeito, mas que podemos identificar em alguém, em alguma coisa
ou em um lugar. É algo que, sem saber, vemos no que amamos e é
exatamente o que nos atrai, o que nos faz amar esse outro – esse alguém,
esse algo ou lugar, que faz semblante – quer dizer, começa a ter a
aparência daquilo que procuramos – daquilo que estamos sempre procurando
e nunca encontrando. Como uma miragem, que identificamos. E meu pai fez
isso. Quando chegou a Barra do Corda ele era um menino – um menino que
se apaixonou. Ele teve uma paixão por Barra do Corda.
Claro que
ele foi levado pelos pais, mais podia ter saído em inúmeras
oportunidades. Eu mesmo, que saí de lá com 15 anos, o chamei para
conhecer outros lugares. Mas ele dizia “Não, Barra do Corda tem tudo o
que eu quero. Tem as pessoas que eu gosto, tem as pessoas que gostam de
mim. Vou fazer o que em outro lugar?”
Tem pessoas que são de
palavras, de letras, que escrevem. Já meu pai sempre foi um homem de
ato. Ele fala pouco. Mas sei dele pelas suas atitudes.
É um homem
que tem o primário. Começou a vida fazendo cal para construção. No
interior do interior. Depois foi morar na cidade, trabalhar como
vendedor. Em seguida, fez sociedade com um concunhado e montou uma das
primeiras farmácias da cidade. E, como vendia remédio, as pessoas
provavelmente começaram a entender que ele podia receitar e tratá-las. E
ele, muito audaciosamente, percebeu que aquilo tinha que ser feito, que
ninguém mais faria. Então fez. Fazia pequenas cirurgias, arrancava
dentes, receitava remédios – era procurado e ajudava.
Eu já era
adolescente quando chegou o primeiro médico. Lembro dele me falar “Olha,
pega o carro, vai buscar o doutor Abreu, traz ele aqui que estou
separando um material para ele”. A Fundação onde o doutor trabalharia
não tinha quase nada. Assim ele entregou todo o material médico que
tinha e, junto, entregou também a função. Nunca mais atendeu ninguém. O
que entendo como uma postura ética. Havia chegado quem merecia aquele
lugar por direito e ele se retirava dignamente.
A música é outra
de suas paixões. Apesar de não tocar absolutamente nada, lutou pela
fundação de uma escola de música. Comprou os instrumentos e, junto com
um grande amigo maestro, formou muitos alunos. Formou também os
Populares do Ritmo, conjunto que proporcionou muitos momentos de lazer
para Barra do Corda e cidades vizinhas.
Também, com amigos ajudou a criar a Academia Barra-Cordense de Letras, tornando-se assim um de seus membros fundadores.
Nunca
se candidatou a nenhum cargo eletivo, apesar dos inúmeros pedidos da
população, e de ser, frequentemente, procurado por políticos como
conselheiro e como homem de ação, que resolvia problemas públicos.
Saneou ruas, tapou bueiros, arriscou-se na função de engenheiro. Foi
Diretor- Presidente de Colégio e Juiz de Paz.
Tomou a iniciativa
de comprar um enorme grupo gerador, distribuiu postes de madeira pelas
ruas e forneceu, durante muitos anos, a energia elétrica para a cidade.
Também, colaborou ativamente na instalação e funcionamento da primeira
Companhia Telefônica de Barra do Corda.
As pessoas se perguntam
por que tantas relações duram tão pouco, enquanto outras duram a vida
toda. Não tenho resposta para isso, é um mistério. Mas acredito que não
tem nada a ver com o saber, nem com o conhecimento. Tem mais a ver com a
arte. Passa pela habilidade de manter uma fantasia viva por muito tempo
– e é um esforço que tem que ser seu. Meu pai teve isso com todos os
amores da vida dele. Ele sustentava seus amores, às vezes mesmo à
revelia desses que amava. Tem isso com a mulher, com os filhos, e teve
isso com a cidade, por mais que pudesse ser custoso para ele. Será que
isso é que é fidelidade? Não a fidelidade ao outro – mas a fidelidade
que comparece na relação com o outro, sendo uma fidelidade ao próprio
desejo.
Quando chegou à Barra do Corda, absorveu a vida
cotidiana da cidade com um amor enorme, pelo sofrimento e pela labuta
das pessoas, como se fosse dali, apesar de ter vindo de outro lugar, com
outros costumes. Mas ele tinha o ímpeto de fazer daquela a cidade dele.
De forma que o diferente foi adotado, a ponto de ocupar lugares da lei,
da saúde e se fazer um homem público.
Hoje está com 87 anos e
nunca ouvi ninguém dizer dele que fosse um forasteiro, nem acho que ele
se via dessa forma. Foi acolhido e acolheu o que a princípio lhe era
estranho. E seu nome paira pela cidade, deixando como legado o amor e a
ética, que não é certamente a ética de levar vantagem em tudo, mas é a
de se satisfazer vendo a beleza e o crescimento da cidade.
Incluir
ou não o outro em nossa vida, não é uma escolha própria, na medida em
que o sujeito se constitui através do outro. Se há alguma escolha, ela
recai muito mais em quem é o objeto do nosso amor. O outro, quer se
queira ou não, faz parte do sujeito. Agora, você pode, sim, incluir o
outro não só como objeto de uso, no sentido de se aproveitar dele, para
receber amor e prazer dele, mas como alguém através do qual e com o qual
será possível efetuar trocas. Essa, em minha opinião, é uma lição que
meu pai deixará.
Por: Jaldo Nascimento Santos