Nos últimos cinco meses, ‘New York Times’ visita 21 hospitais em 17 Estados e constata a falência do sistema de saúde venezuelano
Meredith Kohut e Isayen
Herrera,
THE NEW YORK TIMES
Estadão
CARACAS - O problema da fome assola a Venezuela há anos, mas agora a desnutrição está matando as crianças em ritmo alarmante. Por cinco meses, o New York Times acompanhou o cotidiano hospitais públicos venezuelanos e, segundo os médicos, o número de mortes por desnutrição é recorde.
Desde que a economia da
Venezuela começou a ruir, em 2014, protestos por falta de comida se
tornaram comuns. Também virou rotina ver soldados montando guarda diante
de padarias e multidões enfurecidas saqueando mercados.
As mortes por desnutrição são o segredo mais bem guardado do governo de Nicolás Maduro. Nos últimos cinco meses, o New York Times entrevistou médicos de 21 hospitais em 17 Estados. Os profissionais
descrevem salas de emergência cheias de crianças com desnutrição grave,
um quadro que raramente viam antes da crise.
“As crianças chegam em condições muito graves de desnutrição”,
disse o médico Huníades Urbina Medina, presidente da Sociedade
Venezuelana de Pediatria. De acordo com ele, os médicos venezuelanos têm
se deparado com casos de desnutrição semelhantes aos encontrados em
campos de refugiados.
Para muitas famílias de baixa renda, a crise redesenhou completamente
a paisagem social. Pais preocupados ficam dias sem comer, emagrecem e
chegam a pesar quase o mesmo que seus filhos. Mulheres fazem fila em
clínicas de esterilização para evitar bebês que não possam alimentar.
Jovens que deixam suas casas e se juntam a gangues de rua para
vasculhar o lixo atrás de sobras carregam na pele cicatrizes de brigas
de faca. Multidões de adultos avançam sobre o lixo de restaurantes após
os estabelecimentos fecharem. Bebês morrem porque é difícil encontrar e
pagar pela fórmula artificial que substitui leite materno, até mesmo nas
salas de emergência.
“Às vezes, eles morrem de desidratação nos meus braços”, afirmou a
médica Milagros Hernández, na sala de emergência de um hospital
pediátrico na cidade de Barquisimeto. Ela diz que o aumento de pacientes
desnutridos começou a ser notado no fim de 2016. “Em 2017, o aumento
foi terrível. As crianças chegam com o mesmo peso e tamanho de um
recém-nascido.”
Antes de a economia entrar em colapso, segundo os médicos, quase
todos os casos de desnutrição registrados nos hospitais públicos eram
ocasionados por negligência ou abusos por parte dos pais. Quando a crise
se agravou, entre 2015 e 2016, o número de casos no principal centro de
saúde infantil da capital venezuelana triplicou.
Nos últimos dois anos, a situação ficou ainda pior. Em muitos países,
a desnutrição grave é causada por guerras, secas ou algum tipo de
catástrofe, como um terremoto”, disse a médica Ingrid Soto de Sanabria,
chefe do departamento de nutrição, crescimento e desenvolvimento do
hospital. “Mas, na Venezuela, ela está diretamente relacionada à
escassez de comida e à inflação.”
O governo venezuelano tem tentado encobrir a crise no setor de
saúde por meio de um blecaute quase total das estatísticas, além de
criar uma cultura que deixa os profissionais com medo de relatar
problemas e mortes ocasionados por erros do governo.
As estatísticas, porém, são estarrecedoras. O relatório anual do
Ministério da Saúde, de 2015, indica que a taxa de mortalidade de
crianças com menos de 4 semanas aumentou em 100 vezes desde 2012, de
0,02% para pouco mais 2% - a mortalidade materna aumentou 5 vezes no
mesmo período.
Por quase dois anos, o governo venezuelano não publicou nenhum
boletim epidemiológico ou estatísticas relacionadas à mortalidade
infantil. Em abril, porém, um link apareceu subitamente no site do
Ministério da Saúde conduzindo os internautas a boletins secretos. Os
documentos indicavam que 11.446 crianças com menos de 1 ano morreram em
2016 - um aumento de 30% em um ano.
Os dados ganharam manchetes nacionais e internacionais antes de o
governo declarar que o site tinha sido hackeado. Em seguida, os
relatórios foram retirados do ar. Antonieta Caporale, ministra da Saúde,
foi demitida e a responsabilidade de monitorar os boletins foi passada
aos militares. Nenhuma informação foi divulgada desde então.
Os médicos também são censurados nos hospitais e frequentemente
alertados para não incluir desnutrição infantil nos registros. “Em
alguns hospitais públicos, os diagnósticos clínicos de desnutrição foram
proibidos”, afirmou Urbina.
No entanto, médicos entrevistados em 9 dos 21 hospitais
investigados mantiveram ao menos algum tipo de registro. Eles
constataram aproximadamente 2,8 mil casos de desnutrição somente no
último ano - e crianças famintas regularmente sendo levadas para a
emergência. Quase 400 delas morreram, segundo os pediatras. “Nunca na
minha vida vi tantas crianças famintas”, afirmou a médica Livia Machado,
pediatra que oferece consultas grátis em uma clínica particular.
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