O achado ocorreu em uma área localizada no bairro Vicente Fialho em São Luís durante trabalho de escavação realizado pela empresa MRV. No local onde estão sendo construídos condomínios, foram encontrados 43 esqueletos além de mais de 100 fragmentos arqueológicos na área.
Confira a seguir todos os detalhes na reportagem publicada pelo G1 MA.
G1 MA – Quarenta e três esqueletos humanos foram encontrados nas escavações de uma obra no bairro Vicente Fialho, em São Luís, onde a construtora MRV está erguendo condomínios residenciais do programa federal de habitação Minha Casa Minha Vida.
Além das ossadas, o trabalho de pesquisa e escavação arqueológica, realizado pela empresa W Lage Arqueologia e coordenado pelo arqueólogo Wellington Lage, descobriu um número enorme de peças de valor histórico: são cerca de 100 mil fragmentos, entre cerâmicas, materiais líticos (ferramentas de pedra), carvão, ossos e conchas decoradas.
Análises de laboratório ainda estão em andamento para descobrir com precisão quão antigos são esses materiais e os esqueletos, mas o número de sepultamentos e a quantidade de peças encontradas apontam para um sítio arqueológicoque pode vir a ter um valor ímpar para o estudo do passado brasileiro.
“Além da importância implícita desses materiais, as datações [preliminares] realizadas oferecem novos panoramas inéditos para a arqueologia do Maranhão e, consequentemente, do Brasil”, afirmou o Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) ao g1. “Os achados arqueológicos contribuem, ainda, para a escrita de uma história indígena de longa duração.”
Vários esqueletos foram localizados embaixo de um sambaqui (espécie de morro de conchas e sedimentos construído na beira de rios e no litoral por populações que habitaram o Brasil há milhares de anos) e podem pertencer, pelo que indicam análises preliminares, a homens e mulheres fortes e de baixa estatura que foram cuidadosamente enterrados (leia mais sobre eles abaixo).
Em uma das sepulturas, foi encontrado um vaso de cerâmica que possivelmente é do tipo Mina, um tipo de produção que data de cerca de 5 mil a 7 mil anos atrás e é encontrado em outras áreas do Norte do Brasil – a tradição ceramista dos povos amazônicos remonta a 8 mil anos.
Não é a primeira vez que sítios arqueológicos são descobertos durante obras de engenharia em São Luís, que, segundo pesquisas, é ocupada há mais de 7 mil anos. Um outro sambaqui, o Vinhais Velho, foi encontrado durante a construção da Via Expressa, uma rodovia, e guardava registros de povos pescadores e coletores de marisco que viveram na região há cerca de 3 mil anos.
A nova descoberta foi feita a poucos quilômetros dali e, após a retirada dos itens de interesse arqueológico, o terreno – localizado num bairro de classe média a pouco menos de 5 km da avenida litorânea – irá abrigar 4 condomínios que, pelo fato de São Luís ser uma ilha, foram batizados com nomes caribenhos (Aruba, Havana, San Andrés e San Martin).
Ao todo, serão 1.600 apartamentos que, segundo a MRV, devem contribuir para a diminuição do déficit habitacional de São Luís e gerar cerca de 2.100 empregos diretos e indiretos.
Novos achados a cada dia
O trabalho de pesquisa e escavação arqueológica, realizado pela empresa W Lage Arqueologia, começou ainda em 2019 e segue em andamento.
Procurado, o arqueólogo coordenador do trabalho, Wellington Lage, disse que prefere não dar mais informações enquanto o material está em análise – e em descoberta. Um relatório parcial da W Lage de novembro de 2023 diz que “novos achados estão sendo evidenciados a cada dia”.
Os resultados das análises – que indicarão, por exemplo, a datação dos esqueletos e dos fragmentos – devem levar meses para sair, dado o volume de material e o fato de que alguns exames estão sendo feitas fora do Brasil.
A análise mais aprofundada do conjunto de artefatos e esqueletos pode vir a revelar, ainda, mais informações sobre os grupos que habitaram São Luís e quais eram suas práticas funerárias.
A MRV, dona do empreendimento, diz que “vivenciar estas descobertas foi incrível ainda mais porque pudemos e poderemos contribuir para que mais pessoas tenham a oportunidade de estudar e conhecer esta riqueza arqueológica de valor inestimável”.
A construtora afirma ter fornecido, desde o início, materiais e colaboradores para o trabalho arqueológico e que buscou atender todas as exigências legais. Por determinação do Iphan, a empresa está construindo um centro na Universidade Federal do Maranhão (UFMA) para guarda dos itens.
A legislação brasileira não impede a construção de empreendimentos imobiliários em locais de interesse arqueológico, desde que seguido o licenciamento ambiental, o que foi feito. Em casos de interesse arqueológico, o Iphan é incluído no processo.
A respeito dos sambaquis, a lei que trata dos monumentos arqueológicos e pré-históricos diz apenas que eles terão “precedência para o estudo” e que não pode haver aproveitamento econômico nem destruição das estruturas antes da devida pesquisa. Não há, na legislação, regulamentação específica para o trabalho com remanescentes humanos.
Robustos, baixos e fortes
Os dois primeiros esqueletos na área das obras foram descobertos em 2020. Ambos estavam calcados em fragmentos cerâmicos em meio a camadas de concha do sambaqui.
Um deles foi sepultado junto a um vaso de cerâmica possivelmente do tipo Mina (ainda são necessárias pesquisas para se ter certeza), nome dado a uma produção que data de cerca de 3 mil a 5 mil anos antes de Cristo e já foi encontrada em outros sambaquis de São Luís e do Norte do país, como no município de Quatipuru (PA), a cerca de 350 km (em linha reta) da capital maranhense.
Datações preliminares de sedimentos próximos aos esqueletos apontam para uma ampla faixa de antiguidade entre cerca de 9 mil e 1 mil anos atrás.
A faixa condiz com pesquisas do arqueólogo Arkley Bandeira, da UFMA, que mostram que São Luís começou a ser ocupada há mais de 7 mil anos, e que os povos associados à cerâmica Mina apareceram por volta de 5,8 mil anos antes de Cristo.
Coincidentemente, dois dos sambaquis estudados por Bandeira também foram descobertos “acidentalmente em obras de engenharia” e já estavam impactados pelas construções em andamento.
“Os sítios Vinhais Velho e Maiobinha I não mais existem. O que permaneceu para as futuras gerações foram a cultura material resgatada, a documentação produzida nas atividades de campo e a interpretação dos dados coletados”, escreveu ele em sua tese de doutorado.
Nas escavações do empreendimento da MRV, foram encontrados mais 41 esqueletos ao longo deste ano.
Observações iniciais apontam para homens e mulheres adultos de baixa estatura: um deles tinha cerca de 1,51 metro de altura; outro, possivelmente uma mulher, 1,46 metro.
Pelo menos um deles, o esqueleto do indivíduo 19, foi enterrado com um enfeite. Segundo uma análise inicial, trata-se de um adorno feito de concha, encontrado na região pélvica. Não foi possível precisar o sexo biológico, mas a observação inicial aponta para um adulto de cerca de 1,47 metro.
“Do que pude analisar, aparecem pessoas de diferentes faixas etárias, bastante robustas e de estatura baixa. Pelo tipo de marca que os músculos deixaram nos ossos, eram pessoas acostumadas a muito esforço físico, muita caminhada, muita remada, eram fortes”, diz a arqueóloga Claudia Cunha, que trabalhou como consultora de bioarqueologia no local entre fevereiro e outubro deste ano.
A bioarqueologia estuda remanescentes biológicos humanos, como ossos e dentes. Em campo, bioarqueólogos também buscam garantir os direitos dos esqueletos encontrados — “porque são pessoas, não coisas”, lembra Cunha.
Na avaliação dela, a legislação nacional é hoje insuficiente para orientar o trabalho com remanescentes humanos — e garantir a proteção deles.
Ainda são necessários mais estudos para saber detalhes sobre as pessoas que ali viveram e a cultura que tinham, como o tipo de trabalho que realizavam, do que se alimentavam, que doenças tiveram em vida, como eram seus ritos funerários, quais eram suas idades ao morrer, além de possíveis causas das mortes.
Também ainda não se sabe se o local era um cemitério sobre o qual foi, posteriormente, construído um sambaqui, ou se os corpos foram enterrados no sambaqui, segundo análise feita por Claudia Cunha e Ana Luiza Freitas, respectivamente professora e mestranda na Universidade Federal do Piauí, a pedido da W Lage.
O sítio arqueológico e o andamento das obras
Achados arqueológicos em área de construção de condomínio em São Luís
O potencial arqueológico da área em que o condomínio da MRV está sendo construído é conhecido desde os anos 1980. À época, os pesquisadores Olir Correia Lima Aroso e Olavo Correia Lima encontraram um conjunto de urnas funerárias que indicavam que o local poderia ser um “sítio de enterramento” — hipótese que, agora, pode vir a ser confirmada.
Em 2019, a MRV iniciou o processo de licenciamento ambiental junto ao Iphan para poder tocar a obra. A empreiteira até tentou, em um primeiro momento, que o órgão dispensasse o investimento em pesquisa arqueológica – sem sucesso.
Mais recentemente, em fevereiro deste ano, o relatório de uma visita técnica do Iphan ao local apontou que “os responsáveis da obra reclamaram da morosidade em liberar os espaços onde estão sendo feitas as pesquisas arqueológicas”. Na ocasião, as peritas registraram terem explicado a importância do sítio arqueológico.
“A necessidade de adoção dessas medidas no contexto de um licenciamento ambiental impõe um ritmo específico à execução do empreendimento, de modo que não há como comparar o ritmo de obras em um local com a presença de sítio arqueológico em relação a uma obra em um terreno onde não exista a presença desses bens”, informou o órgão ao g1.
Questionada, a MRV diz que buscou atender todas as exigências legais desde o início, e que o diálogo entre todos os envolvidos – o que inclui o Iphan – ”sempre foi pautado nas soluções técnicas do trabalho e nas tratativas referentes ao andamento da execução do empreendimento, que seguiu paralelo nas áreas previamente liberadas pela arqueologia”.
Em 2021, a construtora dividiu o terreno em quatro condomínios de quatro prédios cada um: Ilha de Aruba (praticamente pronto), Ilha de San Martin (previsto para 2025), Ilha de San Andrés (em fase preliminar da obra) e Ilha de Havana (segundo a MRV, quase metade da obra já está pronta).
A maioria dos esqueletos foi encontrada na área onde será erguida a terceira torre do condomínio Ilha de Havana, que já teve dois dos quatro prédios construídos. No último mês de novembro, o trecho foi colocado à disposição da MRV, após a retirada dos esqueletos. Alguns deles foram removidos em blocos para posterior escavação e exumação.
Em dezembro, as pesquisas continuaram sendo feitas na área onde será o condomínio Ilha de San Andrés. Após a descoberta, pela W Lage, de muitas peças de cerâmica e indícios da existência de um sambaqui (não se sabe se o mesmo de outras áreas do terreno, ou se é um novo), a licença de operação desse empreendimento foi suspensa pelo Iphan.
Até o início do mês passado, o Iphan aguardava a apresentação de um relatório sobre o trabalho arqueológico feito nesta parte do terreno para se manifestar sobre a possibilidade de liberação de novas áreas para as obras do San Andrés.
Esqueletos e objetos vão ficar na UFMA
Todos os achados arqueológicos, incluindo os esqueletos, serão alocados em um espaço que a MRV vai construir, a partir deste ano, na UFMA.
Enquanto o espaço não fica pronto, alguns esqueletos foram abrigados provisoriamente em containers instalados pela empreiteira no campus da universidade.
A construtora diz que vai investir R$ 1 milhão na preservação dos achados, incluindo os custos dos serviços de arqueologia e da construção do Centro de Curadoria e Guarda, como será chamado o local.
“A MRV buscou ainda, fornecer toda a estrutura necessária para preservar a integridade dos achados, isolando áreas, fornecendo salas climatizadas, produzindo caixotes sob medida para os achados mais sensíveis, dentre outras ações no trato diário das atividades”, diz a empresa.
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